Por Renato Carvalho/SIMI
Mesmo com a tecnologia bastante avançada, muitas pessoas com deficiência (PCD) sofrem com dificuldades, em todo o mundo, no seu dia a dia. Aqui no Brasil uma startup trabalha para a fazer a diferença e ajudar na inclusão dessas pessoas.
A Geraes Tecnologia Assistiva, fundada por Adriano Assis, de 36 anos, desenvolveu um teclado que se conecta ao computador e que permite que pessoas com deficiências motoras consigam se comunicar. O aparelho substitui o teclado e mouse convencionais e atua a partir de combinações de comandos para formar letras e ações. Quer saber mais sobre a história da startup? Então leia a entrevista de Adriano para o #PerfilEmpreendedor desta semana:
SIMI: Explique o que faz a Geraes?
Adriano: A Geraes é uma startup que fundamos em 2009 para desenvolver tecnologias que pudessem dar autonomia para pessoas com deficiência. O primeiro produto que lançamos na empresa foi um sistema que ajudava cegos a pegar ônibus sozinhos. Os quatro primeiros anos da empresa foram dedicados a essa tecnologia, que chegou a ser instalada em algumas cidades do Brasil. Mas como o cliente único era sempre o poder público, era muito difícil para uma startup se manter. Então de 2013 para 2014 começamos a desenvolver uma tecnologia voltada para um outro público: com deficiências motoras. São pessoas que não conseguem se mover ou se comunicar. Desenvolvemos uma tecnologia que permitiu que essas pessoas pudessem usar o computador. Essa foi a origem da segunda fase, na qual a empresa se encontra hoje.
SIMI: Como funciona a tecnologia?
Adriano: Desenvolvemos um teclado que permitia que pessoas pudessem usar o computador com as mãos ou com os pés, ou até mesmo com o piscar dos olhos. Era um painel que substituía não apenas o teclado, mas também o mouse, para que essas pessoas que não têm uma coordenação fina e que não conseguiam, portanto, usar um teclado e um mouse convencionais, pudessem ter acesso a qualquer computador com total autonomia. Com base nesta tecnologia, criamos o TiX, um equipamento ligado ao computador e que permite total controle da máquina. A tecnologia virou não apenas um produto, mas uma central de uma solução ainda maior, que se propõe não apenas a permitir que pessoas usem computador, mas incluir alunos com deficiência na educação. Permite, também, fazer terapias de reabilitação com pacientes com deficiência.
SIMI: Como surgiu essa dor? Como chegaram a essa solução?
Adriano: Na verdade, isso foi uma ideia bem legal. Nós já tínhamos a startup desde 2009 e estava pelejando com esse sistema para cegos pegarem ônibus. A empresa estava quase fechando as portas. Em 2013, eu já tinha até colocado uma linha, já que no final daquele ano completaríamos cinco anos de existência e a tecnologia não estava indo bem. Só três cidades estavam rodando o sistema, o que era muito pouco para uma empresa de quase cinco anos. Então, com as últimas moedas no bolso, fui participar de uma feira internacional de tecnologia assistiva, em São Paulo, e lá quase nada deu certo. Mas o que deu muito certo foi que acabei conhecendo, por acaso, um cientista da computação mineiro que nasceu com paralisia cerebral. Ele visitou meu estande, me abordou e eu não entendia o que ele dizia, porque a fala dele era muito comprometida, assim como os movimentos. Depois de muita peleja, um amigo traduziu o que ele dizia. Ele era formado em ciência da computação e tinha desenvolvido um protótipo de um teclado para pessoas que têm deficiência como a dele. Ele explicou que se formou com auxílio de um capacete com uma ponteira, usando a testa para poder digitar. No final da graduação, ele criou um conceito de teclado que tinha poucas teclas, mas que ele poderia digitar e fazer combinações com botões grandes. Ele me explicou sobre isso e eu o convidei para vir a Belo Horizonte para me mostrar exatamente isso. Ele me mostrou o protótipo e a gente – eu e meu sócio Júlio, na época professor da UMFG – começou a ajudar o Glayson para melhorar o protótipo para que ele pudesse usar. O protótipo era muito rudimentar, então começamos a usar nosso tempo livre para ajudá-lo. Nossa empresa já tinha data para fechar. Não tínhamos intenção de lançar aquilo como produto de mercado, já que não tínhamos dinheiro. Nesse meio tempo, o Glaysinho me mandou um e-mail dizendo que havia um prêmio nacional de inovação em tecnologia assistiva, oferecido pela Finep. Ele perguntou se poderíamos inscrever o teclado. Li o regulamento e vi que não dava para inscrever o teclado, porque nesse prêmio só podia se inscrever inovações que estivessem no mercado há pelo menos três anos. Mas nosso sistema para cegos já havia sido instalado na primeira cidade há três anos. Então inscrevi o nosso sistema e ganhamos o prêmio, que eu nem lembrava mais qual era. Quando saiu o e-mail da Finep avisando que éramos os vencedores, pensei: “Nossa, que belo jeito que acabar a empresa, ganhando um prêmio”. Quando fui ver, o prêmio era R$ 100 mil. Decidi não mais fechar a empresa. Peguei esse valor, reinvesti na empresa e pivotei. Decidi usar o dinheiro para transformar o novo produto, baseado no teclado. O TiX, que é nosso produto principal, é derivado da ideia desse teclado do Glayson. Surgiu da dor da deficiência da pessoa que criou esse teclado.
SIMI: Você já empreendia antes? Como era seu contato com empreendedorismo?
Adriano: Desde que me formei em Engenharia Elétrica, trabalhei muito pouco tempo com carteira assinada. Dois anos e meio antes de me formar, já trabalhava com hardware, com projetos de eletrônica, programação etc. Logo que me formei, fui para uma empresa maior para trabalhar com tecnologia para mineração. Pouco mais de um ano depois de formado, surgiu a possibilidade de empreender por convite desse professor da UFMG, para montarmos a Geraes e tentar desenvolver esse sistema para cegos pegarem ônibus. Na minha cabeça, iludidamente, eu poderia tocar isso no final de semana. Iria poder continuar trabalhando com mineração e no final de semana iria levando o projeto. Só que em menos de seis meses percebemos que não dava para fazer isso. Pensei “estou novo, não sou casado, não tenho nada em meu nome, não sou arrimo de família, então a hora de fazer algo para dar muito errado é agora”. Decidi largar a mineração e cair de cabeça na empresa, também achando que em pouco tempo a coisa iria virar. Se eu soubesse de metade do que eu passaria, eu jamais teria feito isso. Mas essa é a graça da vida, você não saber o que te espera lá na frente. Tudo que você faz, você faz com entusiasmo, porque você fica com esperança que vai dar certo. Foram nove anos para começar a dar certo. Agora que a coisa está virando, particularmente depois do Seed. A aceleração fez uma grande diferença nesta ascensão da empresa. Já vínhamos numa ascendente, de 2016 para 2017, mas com o impulso do Seed o negócio começou a decolar. Isso lembrando que a startup foi montada em 2009, quando pouco se falava em startup. Ou você era assalariado ou abria ‘firma’. Não havia essa multiplicidade de programas de inovação, de incentivo ao empreendedorismo. Então foi bem complicado. Se eu soubesse que seriam nove anos para começar a dar certo, “putz”, não sei se iria tentar. Agora que o sangue já está pela estrada, não queremos parar de jeito nenhum.
SIMI: Aproveitando o gancho, como era a Geraes antes e depois do Seed? Como foi esse desenvolvimento?
Adriano: Quando fomos selecionados para o Seed, já vínhamos amadurecendo a questão de modelar a empresa para crescer. Até então, em 2016/2017, a empresa era muito dependente de mim como fundador. Meu sócio era professor da UFMG e tinha acabado de aposentar quando passamos no Seed. Então, ele estava entrando na empresa, na prática, depois de oito anos de funcionamento. Sozinho eu não conseguia pensar em escala. Só conseguia pensar em montar e entregar o produto, receber e pagar as contas e fazer o ciclo. Quando entramos no Seed, foi quando meu sócio entrou de cabeça na empresa. [O Seed] foi fundamental para ele se inteirar também do mundo do empreendedorismo, como isso funciona de uma maneira totalmente diferente da academia. Foi legal para ele se nivelar com o que eu estava passando nos últimos anos e também para nós, juntos, nos inteirarmos sobre novos modelos de negócios, sobre novas possibilidades de receitas, sobre como ir para o mercado, como posicionar o produto e as soluções que estávamos oferecendo. Os seis meses que passamos pelo Seed proporcionaram um crescimento conjunto dos fundadores. Com o incentivo financeiro, conseguimos fazer, de uma maneira bem inteligente, aquilo que não conseguíamos, porque nunca tivemos investidor. Conseguimos compor um estoque mínimo e passar a oferecer o produto de uma maneira mais ousada. Não tínhamos como fazer isso porque a vivíamos operando em bootstrapping, que é operar a empresa com os recursos que ela mesma provê. Como não tínhamos um aporte para dar um impulso e sair desse ciclo, o Seed deu esse recurso e nós finalmente saímos desse ciclo e passamos a crescer. Foi uma virada de chave muito importante, tanto do ponto de vista de aprendizado, como também como impulso financeiro para sair daquele estágio. Não adiantaria nada ter o input de conhecimento se a gente não tivesse essa parte financeira para nos apoiar e tirar do lugar.
SIMI: Você falou sobre investidor. Vocês já conseguiram investidor? Como é conseguir investidor na área de tecnologia assistiva?
Adriano: Nunca buscamos ativamente um investidor, por duas razões basicamente. Primeiro, porque sempre acreditamos na nossa startup. Sempre modelamos como uma empresa convencional do ponto de vista financeiro. Se você abre uma padaria, você tem que gerar caixa no dia seguinte. Não pode ficar esperando um investidor vir e botar dinheiro para girar o negócio. Apesar de ser um produto com potencial de escala, sempre pensamos que se não faturássemos, iríamos morrer. Então sempre demos nosso jeito de gerar caixa para a empresa, de preferência com nossos próprios produtos. De 2015 para 2016, começamos a, efetivamente, não precisar mais contar com empréstimos e colocar dinheiro do nosso próprio bolso para rodar. Isso já foi um grande alívio. Mas nunca paramos para buscar investidor porque já sabíamos que uma hora isso iria, naturalmente, se alimentar. Acreditávamos muito no nosso produto. Outra razão para não buscarmos investidores é porque tanto na área de hardware, como na de tecnologia com pessoas para deficiência, os investidores tradicionais não conhecem muito, não enxergam que é um mercado gigantesco. Não sabem que 20% da população mundial têm alguma deficiência. Eles acham que esse mercado não existe porque você simplesmente não vê essas pessoas na rua. E é isso que estamos fazendo. Abrimos uma startup para tirar a invisibilidade que as pessoas com deficiência tem. A gente está aqui para empoderar as PCDs para fazer com que elas sejam incluídas, para que apareçam. Quando elas aparecerem todos vão perceber que é um grande mercado. Mas já estaríamos nadando nesse mercado. Agora que não morremos e estamos começando a crescer, estamos nadando em um oceano azul, está bem legal. Há poucos players nesse mercado. Quem quiser entrar no mercado vai ter que aprender muito sobre a causa das PCDs antes de aprender sobre tecnologia. Então nesse momento nem é tão interessante buscar um investidor, porque conseguimos fazer a coisa decolar com esforço próprio. Se a tropeçarmos com alguém que queira fazer parte disso e tenha um feat com nosso negócio, nunca vamos fechar as portas. Mas não é uma necessidade que temos agora. O negócio está andando por conta própria e o melhor dinheiro para se investir na empresa é o dinheiro do seu cliente.
SIMI: Qual é a maior dificuldade para empreender na área de tecnologia assistiva?
Adriano: A primeira é desmistificar algumas coisas. Especialmente no Brasil, existe uma percepção das próprias pessoas com deficiência, e de suas famílias, que todo o equipamento voltado para PCD é caro. Isso não é por acaso. Como não existe praticamente indústria nacional para nada na área, todas as tecnologias estão sendo importadas e chegam aqui por preços exorbitantes. Estávamos começando a quebrar isso agora. As pessoas, às vezes, se negam a procurar soluções para isso por causa do mito do preço. Então, a primeira dificuldade é quebrar isso. A outra questão é convencer todos os stakeholders, os fornecedores, os próprios clientes de que existe uma demanda, existe um mercado para isso. As pessoas estão dispostas a pagar se isso realmente resolver uma dor que elas têm. É justamente aí que tentamos mostrar nosso valor. A gente está entregando alguma coisa que realmente muda a vida dessas pessoas. E nada mais justo do que isso gerar uma processo – financeiramente – que possa escalar. De outra forma isso é filantropia, que, aliás, é outra coisa que precisa ser desmistificada. Muitas vezes, as pessoas falam que estamos ganhando dinheiro em cima das PCD. Não, de forma alguma. Estou melhorando a vida delas. A melhor maneira de melhorar a vida de cada vez mais pessoas é por meio de um negócio. Se eu fosse simplesmente fazer filantropia, doação, caridade, eu não conseguiria escalar. Eu mudaria a vida de uma ou duas pessoas, mas, por meio de um negócio, que é sustentado por sua própria receita, eu posso impactar milhões de pessoas. Não apenas no Brasil, mas lá fora. É preciso que as pessoas mudem esse mindset, de achar que tudo que é relacionado à causa social, ou uma fatia social que está em situação de vulnerabilidade, é uma exploração.
SIMI: O que você vê para o futuro da Geraes?
Adriano: Recentemente, de abril para maio, fomos selecionados como uma das Portfolio Companies da Singularity University. Isso é algo grandioso pra gente. Fazemos parte de um portfólio que é composto por apenas 58 startups do mundo inteiro, que são apoiadas pela Singularity para poder impactar 1 bilhão de pessoas nos próximos 10 anos. Abrimos uma firma nos EUA para isso e a Singularity tem 3% da empresa. Ficamos três semanas no Vale do Silício fazendo um programa de incubação, para aprender sobre estratégias, conhecer nossos conselheiros desta empreitada, que vão nos ajudar a pegar o que desenvolvemos no Brasil e ampliar para ter um impacto também fora. Essa é uma das coisas grandiosas que nos aconteceu este ano e vamos começar a focar em como escalar isso globalmente a partir do segundo semestre. Mas nada vai acontecer lá fora se não estiver acontecendo muito bem aqui dentro. Nossa prioridade ainda é o Brasil, especialmente o mercado educacional, o mercado de inclusão escolar, de alunos com deficiência, principalmente na rede pública. Temos um case muito legal na Prefeitura de Recife, que implantou a nossa tecnologia no início deste ano. Queremos levar nossa solução para outras prefeituras, outros governos de estado e, claro, atender também a pessoa com deficiência que está em casa, que precisa de acessibilidade para usar computador e se comunicar. Vamos continuar atendendo esse público com muita atenção. Foram eles que nos fizeram aprender e melhorar o produto, para entregar algo que gere valor para eles.